Sendo a filha de meu pai, filha de um fuzileiro da Marinha, a única coisa em que eu sou boa – lutar – não serve para nada aqui. Se sou inútil no reino animal, pelo menos posso me defender daqueles seres de duas pernas. Desde cedo, querendo ou não, meu pai insistiu que eu fosse sua filha – a filha de fuzileiro da Marinha e eu fosse orgulhosa disso. Ele queria que eu fosse o filho que ele nunca teve. Inscreveu-me em aulas de boxe, de luta livre, artes marciais mistas… Tive infinitas lições de como usar uma faca, como atirar uma arma, como achar pontos fracos, como lutar sujo. E, mais que tudo, ele insistiu que eu fosse valente, que nunca mostrasse medo, nem chorasse.
Ironicamente, nunca tive a chance de usar nenhuma das coisas que ele me ensinou, e isso não podia ser mais inútil aqui; não há ninguém à vista. O que eu realmente preciso saber é como achar comida – não como chutar alguém. E, se por ventura, encontrasse outra pessoa, eu não iria lhe dar um chute, eu pediria ajuda.
Eu penso com esforço e me lembro de que há outro lago por aqui, em algum lugar, um menor; eu o vi uma vez, em um verão quando eu me aventurei e subi ainda mais a montanha. Fica a uns 400 metros de subida íngreme, eu não tentei mais ir lá desde então.
Eu olho para cima e suspiro. O sol já está se pondo, um pôr-do-sol sombrio de inverno aparece em tonalidades avermelhadas; eu já me sinto fraca, cansada e congelada. Preciso de mais energia do que tenho só para descer a montanha. A última coisa que eu quero é subir ainda mais. Mas uma voz baixinha dentro de mim apela para que eu continue escalando. Quanto mais tempo eu passo sozinha esses dias, mais forte é a voz de papai em minha cabeça. Ela me deixa ressentida e tento bloqueá-la, mas, não sei por que, não consigo.
Pare de reclamar e continue em frente, Moore!
Papai sempre gostou de me chamar pelo meu sobrenome. Moore. Isso me irritava, mas ele nunca se importou.
Se eu voltar agora, Bree não terá nada para comer à noite. O lago lá em cima é a minha melhor chance, nossa única fonte de comida. Eu também quero que Bree tenha uma fogueira, e toda a lenha aqui embaixo está encharcada. Lá no alto, onde os ventos são mais fortes, eu posso encontrar lenha seca o suficiente para acendê-la. Dou mais uma olhada montanha acima e decido seguir em frente. Abaixo minha cabeça e começo a escalar, levando minha vara comigo.
Cada passo é doloroso, sinto milhões de agulhas pulsando em minhas coxas, o ar gelado perfura meus pulmões. O vento me golpeia e a neve me castiga, como se houvesse uma lixa em meu rosto. Um pássaro grasna bem lá no alto, como se zombasse de mim. Bem quando eu sinto que não consigo dar mais nenhum outro passo, eu alcanço o platô seguinte.
Este aqui, tão alto, é diferente de todos os outros: é densamente carregado com pinheiros, dificultando visualizar mais de 3 metros à frente. O céu se oculta sob sua enorme copa e a neve está coberta de agulhas verdes. Os troncos gigantescos conseguem impedir a passagem do vento também. Sinto como se tivesse entrado em um pequeno reino privado, oculto ao resto do mundo.
Eu paro e me viro, apreciando a vista: é incrível. Eu sempre achei que tínhamos uma excelente vista da casa meu pai, no meio da montanha, mas aqui, no topo, é espetacular. Picos de montanha aparecem em todas as direções e, além deles, à distância, posso ver o rio Hudson, cintilando. Vejo também as estradas sinuosas que cortam a montanha, incrivelmente intacta. Provavelmente devido ao pequeno número de pessoas que vem até aqui. Eu, na verdade, nunca vi carros nem nenhum outro veículo. Apesar da neve, as ruas estão livres; as estradas íngremes e angulares se aquecem ao sol, sendo perfeitamente drenadas e, para minha surpresa, muito da neve já derreteu.
Sou então atingida por uma pontada de preocupação. Preferia quando as estradas estavam cobertas de gelo e neve, quando eram intransitáveis aos veículos, pois as únicas pessoas que hoje em dia tem carros e combustíveis são os comerciantes de escravos – caçadores de recompensas impiedosos que trabalham para abastecer a Arena Um. Eles patrulham todos os lugares, à procura de sobreviventes, para sequestrá-los e levá-los à arena, como escravos. E lá, me falaram, são obrigados a lutar até a morte para entretenimento da plateia.
Bree e eu temos tido sorte. Não vimos nenhum comerciante de escravos desde que chegamos aqui em cima – mas eu acho que é somente porque moramos no alto, em uma área remota. Apenas uma vez eu ouvi o gemido estridente do motor de um comerciante de escravos, ao longe, do outro lado do rio. Sei que eles estão lá embaixo, em algum lugar, patrulhando. E eu não quero correr nenhum risco – me asseguro de mantermos discrição: raramente queimamos lenha, a menos que seja necessário, e fico de olho em Bree o tempo todo. Na maior parte das vezes, eu a levo para caçar comigo – a teria levado hoje comigo, se não estivesse tão doente.
Eu me viro para o platô e fixo meus olhos no pequeno lago. Completamente congelado, brilhando sob a luz da tarde, parece uma joia perdida, escondida atrás de um bosque de árvores. Aproximo-me, dando alguns passos vacilantes no gelo para me certificar de que este não se quebrará. Quando percebo que é bem sólido, ando um pouco mais. Escolho um ponto, tiro a machadinha do meu cinto e atinjo o gelo, repetidas vezes. Uma rachadura aparece. Retiro minha faca, me ajoelho e golpeio com força bem no meio da rachadura. Enfio a ponta da faca ali e faço um pequeno buraco, de tamanho suficiente para retirar um peixe.
Corro de volta para a borda, escorregando e deslizando e então fixo a vara de pescar entre dois galhos, desenrolo a linha e corro de volta para mergulhá-la no buraco. Eu a tiro da água algumas vezes, com a esperança de que o brilho do metal do anzol atraia alguma criatura viva debaixo do gelo. Mas não consigo deixar de sentir que isso não passa de um esforço inútil, não consigo deixar de suspeitar que tudo que um dia já viveu nessas montanhas morreu há muito tempo.
É ainda mais frio aqui em cima e eu não consigo ficar parada, olhando a linha de pesca. Eu preciso continuar me mexendo. Viro-me e me afasto do lago, meu lado supersticioso me falando que talvez eu pegue um peixe se eu não ficar aqui, em pé, olhando. Ando em pequenos círculos em volta das árvores, esfregando minhas mãos para mantê-las aquecidas. Quase não faz efeito.
Então me lembro da madeira seca. Olho para o chão à procura de lenha, mas é uma tarefa inútil. O chão está coberto de neve. Olho para as árvores e vejo que os troncos e galhos também estão cobertos de neve. Mas, ali, ao fundo, detecto algumas árvores atingidas pelos ventos, sem neve. Dirijo-me em direção a elas e inspeciono a casca, deslizando meu dedo. Fico aliviada ao ver que alguns galhos estão secos. Tiro minha machadinha e corto um ramo dos grandes. Tudo que preciso é uma braçada de lenha, e esse galho é perfeito.
Eu o seguro quando ele cai, sem deixar que toque a neve, e então o apoio contra o tronco e o corto novamente na metade. Eu repito isso de novo e de novo até ter um pequeno estoque de lenha, o bastante para carregar em meus braços. Eu deixo essa pilha encostada em um galho, a salvo e sem ser molhada pela neve que está abaixo.
Eu olho em volta, inspecionando outros troncos e, quando olho mais de perto, algo atrai minha atenção. Aproximo-me de uma das árvores, observando-a atentamente e percebo que sua casca é diferente das outras. Eu olho para cima e percebo que não se trata de um pinheiro e sim de um bordo. Estou surpresa por ver um, aqui no alto, e ainda mais surpresa por reconhecê-lo. Na verdade, um bordo é provavelmente a única coisa na natureza que eu reconheceria. Sem eu querer, uma memória vem à tona.
Uma vez, quando eu era mais nova, meu pai colocou na cabeça que me levaria a uma excursão na natureza. Deus sabe o porquê, mas ele me levou para extrair a seiva dos bordos. Dirigimos por horas em direção a algum lugar desolado no interior, eu, carregando um balde de metal e meu pai, um bocal, e então passamos mais algumas horas andando pela floresta com um guia, em busca dos bordos perfeitos. Eu me lembro do seu olhar de decepção quando extraímos seiva da primeira árvore e um líquido claro escorreu para dentro do nosso balde. Ele estava esperando que saísse xarope.
Nosso guia riu, dizendo a meu pai que árvores de bordo não produziam xarope – elas produziam seiva. A seiva precisava ser fervida para virar xarope. Em um processo que demorava horas, ele falou. E era necessário cerca de 80 galões de seiva para fazer um quarto de galão de xarope.
Papai olhou para o balde que transbordava seiva e ficou vermelho, como se alguém lhe tivesse vendido gato por lebre. Ele era o homem mais orgulhoso que eu já conheci e, se havia algo que ele odiava mais do que se sentir bobo, era alguém zombando dele. Quando o guia riu, papai arremessou o balde nele, errando por pouco e então pegou minha mão e fomos embora.
Depois dessa, ele nunca mais me levou para passear na natureza de novo.
Mas eu não me importei – na verdade, eu tinha gostado do passeio, mesmo com meu pai enfurecido na viagem inteira de volta. Eu havia consegui pegar um pequeno copo de seiva antes de ele me levar embora e lembro-me de ter bebido um pouco no carro, na volta para casa, quando ele não estava olhando. Eu adorei. Tinha gosto de água com açúcar.
Estando aqui, parada, na frente desta árvore, eu a reconheço como se fosse uma irmã. Essa aqui é tão alta, fina e magricela que me deixaria surpresa se tivesse seiva. Mas eu não tenho nada a perder. Tiro minha faca e atinjo a árvore, de novo e de novo, no mesmo local. Então, enfio a faca no buraco, empurrando-a cada vez mais fundo, torcendo-a e girando-a. Eu realmente não espero que nada aconteça.
Fico surpresa quando uma gota de seiva sai. E ainda mais surpresa quando, momentos depois, a gota vira um pequeno fluxo. Estendo meu dedo, encosto no líquido e levo a minha boca. Sinto o açúcar e reconheço o gosto imediatamente. Exatamente como eu me lembrava. Nem consigo acreditar.
A seiva está saindo mais rápido agora e estou perdendo grande parte dela, que escorre pelo tronco. Procuro em volta desesperadamente por algo para armazená-la, algum tipo de balde – mas é claro que não há nenhum. E então me lembro de minha garrafa térmica. Tirei minha garrafa da minha cintura e a esvaziei, derramando toda a água. Posso conseguir água em qualquer lugar, especialmente com essa neve toda – mas esta seiva é preciosa. Seguro a garrafa vazia rente à árvore, desejando que eu pudesse ter um bocal de verdade. Deixo-a o mais perto possível do tronco e consigo colher uma boa parte da seiva. Ela escorre mais devagar do que eu gostaria, mas em poucos minutos, consigo encher metade da garrafa.
O fluxo da seiva parou. Espero por alguns segundos, me perguntando se ele recomeçaria, mas isso não acontece.
Olho a minha volta e reparo em outro bordo, a uns três metros de distância. Eu vou correndo até ele, levanto ansiosamente minha faca e o atinjo com força, dessa vez, me imagino enchendo a garrafa térmica com seiva, imagino a cara de surpresa de Bree quando ela provar. Pode não ser nutritivo, mas isso com certeza a deixará feliz.
Mas, desta vez, quando minha faca fere o tronco, há um ruído agudo pelo qual eu não esperava, seguido por um estalo da madeira. Eu olho para cima, vejo a árvore se envergando e percebo, tarde demais, que esta árvore, congelada e envolvida em neve, já está morta. O golpe de minha faca era tudo que ela precisava para inclinar em direção à borda do lago.
Um segundo depois, a árvore inteira, de pelo menos seis metros, cai, espatifando-se no chão. Isto provocou uma enorme nuvem de neve e agulhas de pinheiros. Abaixei-me, aflita que talvez tivesse alertado alguém sobre minha presença. Estou furiosa comigo mesma. Foi um descuido. Uma besteira. Eu deveria ter examinado a árvore antes.
Contudo, depois de alguns minutos, meu pulso volta ao normal, quando me dou conta de que não há ninguém aqui em cima. Volto a ser sensata, lembro-me que árvores caem sozinhas na floresta o tempo todo e essa queda não necessariamente denunciaria minha presença humana. E, quando passo o olhar sobre onde estava a árvore, algo atrai minha atenção. E me encontro observando, incrédula.
Ali, ao longe, escondendo-se por trás de um bosque de árvores, ao lado da montanha, há uma pequena casa de pedra. É uma estrutura pequena, um perfeito quadrado, com 4,5m de largura e profundidade e 3,5m de altura, com paredes feitas de antigos blocos de pedras. Uma pequena chaminé se levanta do telhado e há pequenas janelas nas paredes. A porta principal, de madeira e em forma de arco, está entreaberta.
Esta pequena casa está muito bem camuflada, se mistura perfeitamente com os arredores, tanto que eu, mesmo olhando para ela, mal consigo distingui-la. Seu telhado e paredes estão cobertos de neve e as pedras expostas se integram precisamente com a paisagem. A casa parece antiga, como se tivesse sido construída centenas de anos atrás. Não entendo o que ela está fazendo aqui, nem quem a teria construído ou por qual motivo. Talvez tenha sido feita para algum vigia de um parque estadual. Talvez tenha sido lar de algum eremita. Ou de um sobrevivente louco.
Parece que não tem sido habitada há anos. Analiso cuidadosamente o chão da floresta, à procura de pegadas ou rastros de animais, saindo ou entrando pela porta. Mas não há nada. Penso em quando a neve começou a cair, vários dias atrás e faço as contas em minha mente. Ninguém saiu ou entrou nessa casa há pelo menos três dias.
Meu coração acelera com a ideia do que pode haver dentro. Comida, roupas, medicamentos, armas, materiais – qualquer coisa seria um presente divino.
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