– Algo mais que eu possa fazer, senhor? – perguntou Lambert, com a polidez absurda do inglês quando envergonhado.
– Vermelho – disse o estranho, vagamente – , vermelho.
– Desculpe?
– Peço-lhe desculpas, Señor – disse o estranho fazendo uma reverência. – Estava imaginando se algum de vocês dispõem de algo vermelho com vocês.
– Algo vermelho conosco? Bem, realmente… Não, não acredito que tenha… Já usei uma bandana vermelha, mas…
– Barker – perguntou Auberon Quin, subitamente – , onde está sua cacatua vermelha? Onde está a sua cacatua vermelha?
– O que você quer dizer? – perguntou Barker, desesperadamente. – Que cacatua? Você nunca me viu com qualquer cacatua!
– Eu sei – disse Auberon, vagamente tranquilizado. – Onde ela esteve esse tempo todo?
Barker virou-se, não sem ressentimento.
– Lamento, senhor – disse ele, breve, mas civilmente – , nenhum de nós parece ter nada vermelho para emprestar-lhe. Mas para que, se posso perguntar.
– Agradeço-lhe, Señor, não é nada. Posso, já que não há outra opção, suprir minhas próprias necessidades.
E de pé, após um segundo de pensamento com o canivete na mão, ele esfaqueou a palma da mão esquerda. O sangue descia com um fluxo tão cheio que atingiu as pedras sem gotejar. O estrangeiro tirou o lenço e arrancou um pedaço dele com os dentes. O pano foi imediatamente embebido em escarlate.
– Uma vez que é tão generoso, Señor, outro alfinete, talvez.
Lambert retirou outro, com os olhos salientes como de um sapo.
A roupa vermelha foi fixada ao lado do papel amarelo, e o estrangeiro tirou o chapéu.
– Tenho que agradecer a todos vocês, senhores – disse, e envolvendo o restante do lenço na mão sangrando, retomou a sua caminhada com uma imponência esmagadora.
Enquanto o restante parou, um tanto atônitos, o pequeno Sr. Auberon Quin correu atrás do estranho e o interpelou, com o chapéu na mão. Consideravelmente para o espanto de todos, dirigiu-se a ele no mais puro espanhol:
– Señor – disse na língua espanhola – , perdoe a hospitalidade, talvez indiscreta, para aquele que parece ser um distinto, mas solitário hospede em Londres. Honraria a mim e a meus amigos, com quem acabou de conversar, acompanhando-nos em um almoço no restaurante ao lado?
O homem com o uniforme verde demostrou grande prazer no mero som de sua própria língua, e aceitou o convite com uma profusão de reverências que mostra, no caso das pessoas do Sul, a falsidade da noção que cerimônia não tem nada a haver com sentimento.
– Señor, a sua linguagem é a minha, mas todo o meu amor para o meu povo não pode levar-me a negar a sua a posse para um anfitrião tão cavalheiresco. Deixe-me dizer que a língua é o espanhol mas o coração é inglês – e foi com o restante para o Cicconani.
– Agora, talvez – disse Barker, após os peixes e o xerez, intensamente polido, no entanto ardendo de curiosidade – , talvez seja rude perguntar por que fez aquilo?
– Fez o quê, Señor? – perguntou o convidado, que falou em um inglês muito bem, embora de uma forma indefinivelmente americana.
– Bem – disse o inglês, com alguma confusão – , quero dizer rasgou uma tira fora e … er … cortou a si mesmo … e …
– Explicar isso, Señor – respondeu o outro, com um certo orgulho triste – , envolve meramente dizer quem eu sou. Eu sou Juan del Fuego, o presidente da Nicarágua.
A forma com que o presidente da Nicarágua inclinou-se para trás e bebeu xerez mostrou que para ele essa explicação cobria todos os fatos observados e muito mais. No entanto, a testa de Barker ainda estava um pouco cerrada.
– E o papel amarelo – começou, com ansiosa simpatia – e o pano vermelho …
– O papel amarelo e o pano vermelho – disse Fuego, com grandeza indescritível – são as cores da Nicarágua.
– Mas a Nicarágua… – começou Barker, com grande hesitação – A Nicarágua não é mais um…
– A Nicarágua foi conquistada como Atenas. A Nicarágua foi anexada como Jerusalém – exclamou o velho, com um fogo incrível. – O Yankee, o alemão e os poderes brutos da modernidade pisaram nela com cascos de boi. Mas a Nicarágua não está morta. A Nicarágua é uma ideia.
Auberon Quin sugeriu timidamente:
– Uma ideia brilhante.
– Sim – disse o estrangeiro, pegando a palavra. – Você está certo, generoso inglês. Uma ideia brilhante, um pensamento que queima. Señor, perguntou-me por que, no meu desejo de ver as cores do meu país, arranquei papel e sangue. Não consegue entender a santidade antiga das cores? A Igreja tem as suas cores simbólicas. E pensar o que essas cores significam para nós.. Pense da posição de alguém como eu, que não pode ver nada mas essas duas cores, nada mas o vermelho e o amarelo. Para mim todas as formas são iguais, todas as coisas comuns e nobres estão em uma democracia de combinação. Onde quer que haja um campo de calêndulas e o manto vermelho de uma velha, ali está a Nicarágua. Onde quer que haja um campo de papoulas e uma mancha amarela de areia, ali está a Nicarágua. Onde quer que haja um limão e pôr do sol vermelho, ali está o meu país. Sempre que vejo uma caixa de correio vermelha e um por do sol amarelo, há batidas do meu coração. Sangue e um pouco de mostarda podem ser minha heráldica. Se há lama amarela e lama vermelha na mesma vala, é melhor para mim do que estrelas brancas.
– E se – afirmou Quin, com igual entusiasmo – há vinho amarelo e vinho tinto no mesmo almoço, você não pode se limitar ao xerez. Deixe-me pedir algum borgonha, e completar, por assim dizer, uma espécie de heráldica da Nicarágua no seu interior.
Barker estava brincando com sua faca, e estava, evidentemente, decidindo se iria dizer algo, com o intenso nervosismo de um inglês que quer ser amável.
– Devo entender, então – disse enfim, com uma tosse – que você, ahem, era o presidente da Nicarágua quando fez sua – er- deve-se, é claro, concordar, heroica resistência a – er..
O ex-presidente da Nicarágua acenou com a mão.
– Não precisa hesitar ao falar comigo. Estou completamente ciente de que a tendência geral do mundo de hoje está contra mim e contra a Nicarágua. Não consideraria nenhuma descortesia se disser o que pensa dos infortúnios que puseram minha república em ruínas.
Barker pareceu imensamente aliviado e satisfeito.
– É generoso, presidente – disse, com alguma hesitação sobre o título – , e vou aproveitar a sua generosidade para expressar as dúvidas que, devo confessar, nós, modernos, possuímos sobre – er- a independência da Nicarágua.
– Assim, suas simpatias estão – disse Del Fuego, calmamente – com a grande nação que…
– Perdoe-me, perdoe-me, presidente – disse Barker, calorosamente – , minhas simpatias não estão com nação nenhuma. Acho que entende mal o intelecto moderno. Não desaprovamos o fogo e extravagância de repúblicas como a sua para que se tornem mais extravagantes em uma escala maior. Não condenamos a Nicarágua porque pensamos que a Grã-Bretanha deveria ser mais nicaraguense. Não desencorajamos nacionalidades pequenas porque queremos que as grandes nacionalidades tenham sua pequenez, a uniformidade de sua perspectiva, o exagero de seu espírito. Se diferimos com o maior respeito do seu entusiasmo da Nicarágua, não é porque uma nação ou dez nações estão contra você, contra vós está a civilização. Nós, modernos, acreditamos em uma grande civilização cosmopolita, uma que deve incluir todos os talentos de todos os povos…
– O Señor vai me perdoar – disse o presidente. – Posso perguntar ao Señor como, em circunstâncias normais, pega um cavalo selvagem?
– Nunca pego um cavalo selvagem – respondeu Barker, com dignidade.
– Exatamente – disse o outro – , e aqui termina a sua absorção dos talentos. É disto que me queixo do seu cosmopolitismo. Quando diz que quer todos os povos unidos, realmente quer dizer que deseja que todos os povos unam-se para aprender os truques do seu povo. Se beduínos árabes não sabem ler, algum missionário ou professor inglês deve ser enviado para ensiná-los a ler, mas ninguém diz: “Este professor não sabe como montar em um camelo, vamos pagar um beduíno para ensiná-lo.” Você diz que sua civilização irá incluir todos os talentos. Vai? Realmente quer dizer que no momento em que um esquimó aprender a votar em um Conselho Municipal, você aprenderá a caçar uma morsa? Recorrendo ao meu exemplo: na Nicarágua tínhamos uma maneira de capturar cavalos selvagens lançando as patas dianteiras, que era supostamente a melhor na América do Sul. Se você vai incluir todos os talentos, faça-o. Se não, permita-me dizer o que sempre disse, que algo do mundo se perdeu quando a Nicarágua foi civilizada.
– Alguma coisa, talvez – respondeu Barker – , mas algo que era uma mera destreza bárbara. Sei que não poderia lascar pedras como um homem primitivo, mas sei que a civilização pode fazer facas que são melhores, e confio na civilização.
– Está bem acompanhado – respondeu o ex-presidente da Nicarágua. – Muitos homens inteligentes confiaram na civilização. Muitos babilônios inteligentes, muitos egípcios inteligentes, muitos homens inteligentes no fim do Império Romano. Pode me dizer, num mundo onde é flagrante os fracassos das civilizações, o que torna a sua particularmente imortal?
– Acho que não entende muito bem, Presidente, o que é a nossa civilização – respondeu Barker. – Julga como se a Inglaterra ainda fosse uma ilha pobre e combativa; esteve fora da Europa faz muito tempo, muitas coisas aconteceram.
– E em que – perguntou o outro – se resume essas coisas?
– O resumo dessas coisas – respondeu Barker, com grande animação – é que nos livramos das superstições, e não somente das superstições que, com mais frequência e entusiasmo, são assim descritas. A superstição das grandes nacionalidades é ruim, mas a superstição das pequenas nacionalidades é pior. A superstição de reverenciar nosso próprio país é ruim, mas a superstição de reverenciar países de outras pessoas é pior. É assim em toda parte, e em uma centena de maneiras. A superstição da monarquia é ruim, a superstição da aristocracia é ruim, mas a superstição da democracia é a pior de todas.
O velho abriu os olhos com alguma surpresa:
– Então, a Inglaterra não é mais uma democracia?
Barker riu.
– A situação convida o paradoxo. Somos, em certo sentido, a mais pura democracia. Nós nos tornamos um despotismo. Não percebeu como continuamente na história a democracia torna-se despotismo? As pessoas chamam isso de decadência da democracia. É simplesmente o seu cumprimento. Por que ter o problema de numerar, registrar e emancipar todos os inúmeros John Robinsons, quando você pode lidar com somente um John Robinson com o mesmo intelecto ou a falta de intelecto de todo o resto? Os antigos republicanos idealistas fundaram a democracia baseado na ideia de que todos os homens são igualmente inteligentes. Acredite em mim, a democracia sã e duradoura é fundada no fato de que todos os homens são igualmente idiotas. Por que não devemos escolher um dentre eles como qualquer outro. Tudo o que queremos para o governo é um homem que não seja criminoso ou insano, que pode rapidamente olhar sobre algumas petições e assinar algumas declarações. Pense no tempo que foi desperdiçado discutindo a Câmara dos Lordes, os conservadores dizendo que deveria ser preservada porque era boa, e os radicais dizendo que deveria ser destruída porque era estúpida. Mas ninguém viu porque era estúpida, pois essa turba de homens comuns jogados lá por acidente de sangue era um grande protesto democrático contra a Câmara Baixa, contra a eterna insolência da aristocracia de talentos. Estabelecemos agora na Inglaterra, o que todos os sistemas têm tateado vagamente, o maçante despotismo popular sem ilusões. Queremos um homem à frente do nosso Estado, não porque ele é brilhante ou virtuoso, mas porque ele é um homem e não uma multidão vibrante. Para evitar a possibilidade de doenças hereditárias e coisas desse tipo, abandonamos a monarquia hereditária. O rei da Inglaterra é escolhido como um jurado em uma lista oficial de rotação. Além de que todo o sistema é tranquilamente despótico, e ninguém sequer levanta um murmúrio.
– Quer dizer – perguntou o Presidente, incrédulo – que vocês escolhem um homem comum que esteja a mão e fazem dele um déspota, que confiam nas chances de uma lista alfabética…
– E por que não? – gritou Barker. – Metade das nações históricas não confiaram nas chances dos filhos mais velhos de filhos mais velhos, e metade delas não obtiveram resultados razoáveis? Um sistema perfeito é impossível; mas ter um sistema é indispensável. Todas as monarquias hereditárias foram uma questão de sorte: assim são monarquias alfabéticas. Pode encontrar um profundo significado filosófico na diferença entre os Stuarts e os Hanoverians? Acredite em mim, me comprometo a encontrar um profundo significado filosófico no contraste entre a negra tragédia de A, e o sucesso contínuo de B.
– E vocês arriscam? Embora o homem pode ser um tirano, um cínico ou um criminoso.
– Corremos o risco – respondeu Barker, com perfeita placidez. – Suponha que ele é um tirano, ainda deve lidar com uma centena de tiranos. Suponha que ele é um cínico, é de seu interesse para governar bem. Suponha que ele é um criminoso, removendo pobreza e substituindo por poder, colocamos em cheque sua criminalidade. Em suma, através do despotismo substitutivo impusemos controle total num criminoso e controle parcial sobre todo o resto.
O velho cavalheiro da Nicarágua inclinou-se com uma expressão estranha nos olhos.
– Minha igreja, senhor, me ensinou a respeitar a fé. Não quero desrespeitar qualquer um de vocês, mas realmente quer dizer que confia num homem comum, o homem que pode estar ao seu lado, como um bom déspota?
– Confio – disse Barker, simplesmente. – Ele pode não ser um bom homem. Mas ele será um bom déspota. Pois, quando se trata de um simples negócio rotineiro de governo, ele vai se esforçar para fazer justiça ordinária. Não assumimos a mesma coisa em um júri?
O velho Presidente sorriu.
– Não sei se tenho qualquer objeção particular em detalhes para o seu excelente esquema de governo. Minha única objeção é bastante pessoal. É que se me perguntassem se gostaria de participar disto, perguntaria em primeiro lugar, se não seria permitido, como alternativa, ser um sapo em uma vala. Isso é tudo. Não se pode argumentar com a escolha da alma.
– Da alma – disse Barker, franzindo o sobrolho – não posso falar nada, mas atendendo-se ao interesse público..
De repente, o sr. Auberon Quin levantou-se.
– Se me dão licença, senhores, sairei por um momento para tomar ar.
– Sinto muito, Auberon – disse Lambert, gentilmente. – Sente-se mal?
– Não mal exatamente – disse Auberon, contido – , bem, na verdade. Estranha e ricamente bem. O fato é que quero refletir um pouco sobre essas belas palavras que acabam de ser proferidas. “Atendendo-se” … sim, era essa a frase, “atendendo-se ao interesse público.” Não se pode tirar o mel de tais coisas sem ficar um pouco só.
– Será que ele está realmente fora de si? – perguntou Lambert.
O velho Presidente cuidava dele com olhos estranhamente vigilantes.
– Acredito que é um homem que não deseja nada, exceto uma piada. É um homem perigoso.
Lambert riu no ato de levantar macarrão à boca.
– Perigoso! Não conhece Quin, senhor!
– Todo homem perigoso – disse o velho sem mover-se – é o que só se preocupa com uma coisa. Eu mesmo já fui perigoso.
E com um sorriso agradável, terminou o café e levantou-se, inclinando-se profundamente, e entrou na neblina, que havia crescido novamente densa e sombria. Três dias depois souberam que havia morrido calmamente num alojamentos no Soho.
Em outro lugar, em meio ao mar escuro da névoa estava uma pequena figura abalada e com tremores, com o que poderia ser à primeira vista terror ou malária: mas que na verdade sofria de uma estranha doença, o riso solitário. Ele estava repetindo novamente para si mesmo com um rico sotaque – Mas, atendendo-se ao interesse público…
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